Caso Benício: médicos defendem múltiplas checagens e mais emergencistas nos hospitais após morte por aplicação de adrenalina

Benício Xavier de Freitas, de 6 anos, morreu em hospital de Manaus. Arquivo pessoal A morte do menino Benício Xavier de Freitas, de 6 anos, após receber adre...

Caso Benício: médicos defendem múltiplas checagens e mais emergencistas nos hospitais após morte por aplicação de adrenalina
Caso Benício: médicos defendem múltiplas checagens e mais emergencistas nos hospitais após morte por aplicação de adrenalina (Foto: Reprodução)

Benício Xavier de Freitas, de 6 anos, morreu em hospital de Manaus. Arquivo pessoal A morte do menino Benício Xavier de Freitas, de 6 anos, após receber adrenalina aplicada por via intravenosa em um hospital particular de Manaus acendeu o alerta sobre os protocolos adotados em emergências pelo país e despertou dúvidas sobre o uso da medicação. Médicos ouvidos pelo g1 reforçam a importância da dupla ou tripla checagem por parte de profissionais de saúde – como enfermeiros, técnicos de enfermagem e farmacêuticos - em prescrições de medicamentos. Eles também destacaram a importância da presença de médicos emergencistas nas emergências - atualmente, a maioria das emergências do país conta com recém-formados e não possui emergencistas nos quadros. Isso porque os primeiros médicos emergencistas começaram a se formar em 2019 e, dos 500 mil médicos do país, apenas cerca de 1.200 são emergencistas. Segundo especialistas, a administração de adrenalina endovenosa costuma ocorrer apenas em casos graves, como parada cardiorrespiratória. O Conselho Regional de Farmácia do Amazonas (CRF-AM) informou que realizou uma vistoria técnica no Hospital Santa Júlia após o caso e que “ficou evidenciado que não houve participação do profissional farmacêutico na dispensação do medicamento envolvido”. Os pais de Benício alegam que o filho morreu na madrugada de domingo (23), após receber uma dose incorreta de adrenalina aplicada por via intravenosa, no Hospital Santa Júlia. Veja os vídeos que estão em alta no g1 Médica reconheceu que errou, mas não foi questionada pela equipe de enfermagem A médica Juliana Brasil Santos reconheceu que errou ao prescrever adrenalina na veia da criança, de acordo com o relatório do hospital enviado à Polícia Civil, ao qual a Rede Amazônica teve acesso com exclusividade. No relatório enviado, a médica narra que comentou com a mãe da criança que a medicação deveria ser administrada por via inalatória. Ela afirmou também ter se surpreendido por a equipe de enfermagem não questionar a prescrição. “Prescrevi erroneamente adrenalina por via EV, sendo que orientei verbalmente a mãe qual seria minha conduta de todas as medicações e sinalizei adrenalina por via inalatória. Inclusive a mesma alertou e insistiu tal orientação antes da administração por via venosa. Enfermagem administrou adrenalina EV mesmo a mãe insistindo na via inalatória. Inclusive me surpreendo também pela equipe não ter vindo confirmar minha conduta e via de administração da medicação antes de ser feita. Após tal fato, paciente evoluiu com taquicardia, palidez cutânea, tec prolongado e dispneia”. Outro relatório, elaborado pela UTI Pediátrica, confirma que Benício deu entrada após a “administração errônea de adrenalina na veia”. O documento aponta que o menino apresentou taquicardia, palidez cutânea e dificuldade para respirar. Além disso, o relatório aponta ainda um quadro de “infecção por drogas que afetam o sistema nervoso”. Benício apresentava tosse seca e suspeita de laringite, após dois episódios de febre. Segundo a família, a médica prescreveu lavagem nasal, soro, xarope e três doses de adrenalina intravenosa de 3 ml a cada 30 minutos. A aplicação foi feita por uma técnica de enfermagem de plantão. Benício Xavier de Freitas, de 6 anos, e família. Arquivo pessoal Denúncia e investigação O hospital informou que a médica e a técnica de enfermagem responsáveis pelo atendimento permanecem afastadas durante o processo de apuração interna. A Polícia Civil afirma que Juliana Brasil é a principal suspeita por ter prescrito a medicação. A técnica de enfermagem Raiza Bentes Paiva aplicou a dose conforme registrado no prontuário. O delegado responsável pelo caso pediu a prisão preventiva da médica, afirmando que a criança foi vítima de homicídio doloso — quando há intenção de matar ou assunção de risco. Segundo o delegado Marcelo Martins, o caso é investigado como homicídio doloso qualificado, e a investigação avalia a possibilidade de agravantes. A Justiça, porém, negou o pedido por entender que não há, até o momento, “fundamentos suficientes” para manter a prisão. A médica responde ao processo em liberdade. O Conselho Regional de Medicina do Amazonas (CREMAM) instaurou Processo Ético, em caráter sigiloso, para apurar a conduta da profissional. A família informou ao g1 que questionou a forma de administração do medicamento, porque em atendimentos anteriores a adrenalina havia sido prescrita por via inalatória. Mesmo assim, a técnica de enfermagem aplicou a droga por via venosa porque estava registrada no prontuário, apesar de relatar nunca ter feito aplicação intravenosa do tipo. Os pais de Benício disseram ainda que a médica estava perdida e falou com alguém no telefone pedindo ajuda para salvar Benício. Quando a adrenalina deve ser prescrita e como pode ser administrada A adrenalina age de forma rápida e tem efeitos potentes no coração, nos vasos sanguíneos e no sistema respiratório. O principal uso da adrenalina venosa em emergência é em casos de parada cardiorrespiratória, e em casos pontuais no risco iminente de morte, explica a presidente da Associação Brasileira de Medicina de Emergência (ABRAMEDE), Camila Lunardi. A adrenalina pode ser aplicada de diferentes formas: Endovenosa (EV): entra diretamente na circulação e tem efeito em segundos. É usada em casos graves, de parada cardiorespiratória e choque refratário (pressão arterial muito baixa, que não melhora). Neste último caso, ela é diluída. Inalatória: age mais nas vias aéreas e tem menor absorção sistêmica. É usada em diversos casos de reações alérgicas graves que podem levar à morte (anafilaxia), como em casos de alergia à picada de inseto, a produto químico e até a camarão, que pode levar ao fechamento de glote. Ela causa vasoconstrição na mucosa respiratória e diminui o edema, facilitando a respiração. Subcutânea: também em casos de reações alérgicas Intramuscular: também em casos de reações alérgicas A adrenalina reverte rapidamente: Queda de pressão Fechamento das vias aéreas Inchaço de língua e glote Urticária grave Por que ela funciona tão rápido? A adrenalina ativa receptores que: contraem vasos sanguíneos (aumenta pressão), relaxam músculos dos pulmões (melhora respiração), aumentam força e frequência dos batimentos cardíacos. As complicações da adrenalina mais comuns são arritmias. Em quadros de asma grave, associada a anafilaxia ou pré-parada respiratória, a adrenalina pode ser uma droga que salva vidas, segundo médicos ouvidos pelo g1. A importância dos emergencistas Ao defender a valorização da especialização do emergencista, a ABRAMEDE destaca que estes profissionais começaram a ser valorizados em situações trágicas, como no caso da boate Kiss, na epidemia de Covid-19 e nas enchentes do Rio Grande do Sul. “Quando houve o incêndio da boate Kiss, houve menos mortes porque um grupo de pacientes foi atendido por um emergencista. Quando tivemos a epidemia da Covid, os pacientes sobreviviam mais nos hospitais que tinham emergencistas. Nas enchentes do RS, foram emergencistas de todo o Brasil atender as vítimas”, afirma Lunardi. A ABRAMEDE explica que a especialidade de emergencista foi reconhecida no Brasil há 10 anos e que ainda há um problema numérico, pois o país ainda tem 1.200 emergencistas diante de um total de 500 mil médicos. “A gente propõe para as instituições projetos de longo prazo, cobrando que nos próximos de 5 ou 10 anos os chefes de plantão sejam emergencistas. Até para os médicos terem motivação para fazer esta especialidade”, diz Lunardi. Na prática, as emergências pelo país contam com médicos recém-formados que recebem a mesma valorização dos emergencistas, segundo médicos ouvidos pelo g1. Os protocolos de dupla checagem e a teoria do queijo suíço A médica intensivista, emergencista e presidente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira Patrícia Mello destacou em entrevista ao g1 que está muito bem descrito na literatura mundial a necessidade de múltiplas checagens entre o momento de uma prescrição e a administração do medicamento. A especialista explica que isso minimiza a chance de falha humana e que eventos adversos acontecem em todo o mundo. Ela defende a profissionalização de assistência em emergências e UTIs: “É preciso ter checagem da farmácia, da enfermagem, de uma cadeia grande de processos para que eventos adversos não aconteçam. Todos os hospitais devem ter processos de qualidade e segurança garantindo que todos estejam cientes e envolvidos nesses processos. É missão de todos participar do processo e todo profissional de saúde que lida com medicações devem conhecer as dosagens e vias de administração”, afirma Mello. A especialista citou a teoria do queijo suíço, modelo criado pelo psicólogo britânico James Reason e usado para analisar riscos em sistemas complexos, especialmente na área da saúde. O modelo parte da ideia de que nenhuma barreira de proteção é perfeita. Cada camada — protocolos, treinamento, supervisão — tem seus “furos”. Quando esses buracos se alinham, ocorre o evento adverso. Exemplo na administração de medicamentos: falha na verificação dupla da prescrição etiqueta confusa ou embalagem semelhante profissional não confere a dose antes de aplicar Ao identificar e corrigir esses “buracos”, hospitais conseguem reduzir significativamente o risco de erros.